quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Capítulo 2 (O Simbolo Perdido)



CAPÍTULO 2

O homem que se apresentava como Mal'akh pressionou a ponta da agulha no couro cabeludo
raspado, suspirando de prazer enquanto o instrumento pontiagudo entrava e saía de sua pele. O leve
ronco do aparelho elétrico era viciante... Assim como  as espetadelas da agulha que penetravam
profundamente em sua derme para ali depositar o pigmento. Eu sou uma obra-prima.
O objetivo da tatuagem nunca foi a beleza. O objetivo era a mudança. Desde os sacerdotes
núbios escarificados de 2000 a.C. até as cicatrizes moko dos maoris modernos, passando pelos
acólitos tatuados do culto a Cibele na Roma antiga, os seres humanos haviam se tatuado como uma
forma de oferenda, um sacrifício parcial do próprio corpo, suportando a dor física do embelezamento
e sendo por ela transformados. Apesar dos avisos ameaçadores em Levítico 19:28, que proibiam
marcas na pele, as tatuagens se tornaram um rito de passagem compartilhado por milhões de pessoas
na era moderna - de adolescentes mauricinhos a viciados em drogas e donas de casa suburbanas.
O ato de tatuar a própria pele era uma transformadora declaração de poder, um anúncio ao
mundo: eu tenho controle sobre a minha própria carne. A embriagante sensação de poder advinda
dessa transformação física deixara milhares de pessoas viciadas em práticas de alteração corporal -
cirurgia plástica, piercings, fisiculturismo, anabolizantes e até mesmo bulimia e mudança de sexo. O
espírito humano anseia por dominar seu invólucro carnal. O relógio de pêndulo de Mal'akh deu uma
única badalada, e ele ergueu os olhos. Seis e meia da tarde. Deixando as ferramentas de lado,
envolveu o corpo nu de 1,90m no roupão de seda japonês de Kiryu e desceu o corredor. O ar dentro
da grande mansão estava pesado com o aroma pungente de seus pigmentos para a pele e da fumaça
das velas de cera de abelha que ele usava para esterilizar as agulhas.
Ao atravessar o corredor, o homem alto passou por antiguidades italianas de preço inestimável
- uma água-forte de Piranesi, uma cadeira Savonarola, uma lamparina de prata Bugarini. Enquanto
andava pela casa, olhou por uma janela que ia do chão até o teto para admirar o contorno clássico da
paisagem distante. O domo luminoso do Capitólio reluzia com um poder solene contra o céu escuro
de inverno. É lá que ele está escondido, pensou. Está enterrado lá em algum lugar.
Poucos eram os homens que sabiam da sua existência... E mais raros ainda os que conheciam
seu impressionante poder ou a forma engenhosa como havia sido escondido. Até hoje, era o maior
segredo não revelado daquele país. Os poucos que de fato conheciam a verdade mantinham-na oculta
atrás de um véu de símbolos, lendas e alegorias. Agora eles abriram suas portas para mim, pensou
Mal'akh. Três semanas antes, em um ritual obscuro testemunhado pelos homens mais influentes dos
Estados Unidos, Mal'akh havia alcançado o grau 33, o mais alto escalão da mais antiga irmandade


ainda ativa no mundo. No entanto, apesar da nova posição de Mal'akh, os irmãos nada haviam
revelado. E nem vão contar, sabia ele. Não era assim que funcionava. Havia círculos dentro de
círculos... Irmandades dentro de irmandades. Mesmo que Mal'akh esperasse muitos anos, talvez
nunca viesse a conquistar sua total confiança.
Felizmente, não precisava disso para descobrir seu mais bem guardado segredo.
Minha iniciação cumpriu seu objetivo.
Animado com o que estava por vir, ele seguiu a passos largos até seu quarto de dormir.
Espalhados por toda a casa, alto-falantes transmitiam os sons fantasmagóricos de uma rara gravação
de um castrato cantando o "Lux Aeterna" do Réquiem de Verdi - um lembrete de uma vida anterior.
Mal'akh acionou o controle remoto para fazer soar o tonitruante "Dies Irae". Então, embalado por um
fundo musical de furiosos tímpanos e quintas paralelas, disparou escadaria de mármore acima, com o
roupão a esvoaçar conforme galgava os degraus com as pernas musculosas. Enquanto corria, sua
barriga vazia reclamou com um ronco. Já fazia dois dias que Mal'akh estava em jejum, bebendo
apenas água, preparando o corpo segundo os antigos costumes. A sua fome será saciada ao raiar do
dia, lembrou a si mesmo. Assim como a sua dor.
Mal'akh adentrou o santuário de seu quarto com uma atitude de reverência, trancando a porta
atrás de si. Enquanto seguia em direção ao toucador, parou, sentindo-se atraído pelo enorme espelho
dourado. Incapaz de resistir, virou-se para encarar o próprio reflexo. Vagarosamente, como quem
desembrulha um precioso presente, abriu o roupão para revelar o corpo nu. A visão o deixou
maravilhado. Eu sou uma obra-prima.
Seu imenso corpo estava todo raspado e liso. Ele baixou os olhos primeiro para os pés,
tatuados com as garras de um gavião. Mais acima, as pernas musculosas desenhadas como pilastras
esculpidas em relevo - a esquerda em espiral, a direita com estrias verticais. Boaz e Jaquim. A virilha
e o abdômen eram um arco decorado, acima do qual o peito forte exibia o brasão da fênix de duas
cabeças... Ambas em perfil, com os olhos aparentes formados por seus mamilos. Os ombros, o
pescoço, o rosto e a cabeça raspada estavam completamente tomados por uma intrincada tapeçaria de
símbolos e marcas.
Eu sou um artefato... Um ícone em construção.
Dezoito horas antes, um mortal tinha visto Mal'akh nu. O homem soltara um grito de medo.
– Meu Deus, você é um demônio!
– Se é assim que você me vê... - Havia respondido Mal'akh, ciente, como os antigos, de que
anjos e demônios eram idênticos, arquétipos intercambiáveis, e de que tudo era uma questão de
polaridade: o anjo guardião que derrotava o inimigo no campo de batalha era considerado por ele um
demônio destruidor.
 

Mal'akh então inclinou o rosto para baixo, obtendo uma visão oblíqua do próprio cocuruto. Ali,
dentro do halo que parecia uma coroa, reluzia um pequeno círculo de pele clara, sem tatuagem.
Aquela tela cuidadosamente preservada era o único pedaço de pele virgem do corpo de Mal'akh. O
lugar sagrado vinha aguardando pacientemente... E naquela noite seria preenchido. Embora Mal'akh
ainda não tivesse em mãos aquilo de que precisava para completar sua obra-prima, sabia que a hora
estava se aproximando depressa.
Empolgado com o próprio reflexo, já podia sentir seu poder aumentar. Fechou o roupão e
andou até a janela, olhando novamente para a cidade mística à sua frente. Ele está enterrado lá em
algum lugar.
Tornando a se concentrar na tarefa em questão, Mal'akh foi até a penteadeira e, com cuidado,
cobriu o rosto, o couro cabeludo e o pescoço com uma camada de corretivo até as tatuagens
sumirem. Então vestiu as roupas e outros acessórios especiais que havia preparado meticulosamente
para aquela noite. Ao terminar, examinou-se no espelho. Satisfeito, alisou o couro cabeludo com a
palma suave de uma das mãos e sorriu.
Ele está lá, pensou. E hoje à noite um homem vai me ajudar a encontrá-lo. 
Enquanto saía de casa, Mal'akh se preparava para o acontecimento que abalaria o prédio do
Capitólio dos Estados Unidos naquela noite. Fizera um esforço imenso para colocar todas as peças
em seus devidos lugares. E agora, finalmente, seu último peão havia entrado no jogo.

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