CAPÍTULO 37
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Mal'akh já vira alguns lugares sinistros na vida, mas poucos se comparavam
ao mundo
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extraterrestre do Galpão 3. Galpão Molhado. A sala imensa dava a
impressão de que um cientista
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louco havia invadido um supermercado e preenchido cada corredor
e gôndola com jarros de todos os
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formatos e tamanhos contendo espécimes. Iluminado como um laboratório de fotografia, o espaço
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estava banhado por uma névoa vermelha de "luz de segurança" que vinha de baixo das
prateleiras e
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subia para clarear os recipientes cheios de álcool etílico. O cheiro hospitalar de
conservantes
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químicos era nauseante.
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– Este galpão abriga mais de 20 mil espécies. - Disse a moça gordinha. - Peixes, roedores,
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mamíferos, répteis.
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– Todos mortos, espero. - Disse Mal'akh, fingindo nervosismo. A
moça riu.
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– Sim, sim. Todos mortinhos da silva. Confesso que passei seis
meses trabalhando aqui sem ter
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coragem de entrar neste galpão.
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Mal'akh podia entender por quê. Para onde quer que olhasse, se
deparava com seres mortos
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envasados: salamandras, águas-vivas, ratos, besouros, pássaros e outras coisas que ele era
incapaz de
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identificar. Como se essa coleção já não fosse suficientemente
perturbadora, as tênues luzes de
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segurança que protegiam os espécimes fotossensíveis da exposição prolongada à claridade davam ao
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visitante a sensação de estar parado dentro de um
gigantesco aquário, no qual criaturas sem vida
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haviam de alguma forma se reunido para espiá-lo das sombras.
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– Aquilo ali é um celacanto. - Disse a moça, apontando para um grande
recipiente de plexiglas
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contendo o peixe mais feio que Mal'akh já tinha visto na vida. - Antigamente
se pensava que eles
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tivessem sido extintos junto com os dinossauros, mas esse daí foi capturado na África alguns anos
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atrás e doado para o Smithsonian.
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Que sorte a sua, pensou Mal'akh, mal escutando o que ela dizia.
Estava ocupado correndo os
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olhos pelas paredes em busca de câmeras de segurança. Viu apenas uma apontada para a
porta de
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entrada, o que não era nenhuma surpresa, já que aquela era provavelmente a única forma de se entrar
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ali.
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– E aqui está o que o senhor queria ver... -
Disse a moça, conduzindo-o até o tanque gigante
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que ele tinha avistado pela janela. - Nosso maior espécime. - Ela gesticulou indicando a
criatura
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abominável, como o apresentador de um programa de auditório exibindo um automóvel novo. - A
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Architeuthis. O tanque da lula parecia várias cabines telefônicas deitadas de lado e acopladas
umas às
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pálido e amorfo. Mal'akh baixou os olhos para a cabeça bulbosa, parecendo um saco frouxo,
e para
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os olhos do tamanho de bolas de basquete.
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– Perto dela, seu celacanto é quase bonito.
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– Espere até vê-la iluminada.
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Trish retirou a enorme tampa do tanque. Vapores de etanol
emanaram do seu interior quando
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ela pôs a mão lá dentro e acendeu um interruptor logo acima da superfície do líquido. A Architeuthis
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então se iluminou em toda a sua glória - uma cabeça colossal presa a uma escorregadia
massa de
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tentáculos apodrecidos e ventosas afiadas feito navalhas. Ela começou a contar como a lula gigante
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era capaz de derrotar um cachalote em um combate.
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Mal'akh escutava apenas um blá-blá-blá sem sentido. Havia chegado a hora.
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Trish Dunne sempre ficava um pouco nervosa no Galpão 3, mas o calafrio que acabara de
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percorrer seu corpo era diferente.
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Visceral. Primitivo.
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Ela tentou ignorar a sensação que aumentava depressa, tomando
conta dela. Embora Trish não
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conseguisse identificar a origem de sua ansiedade, seu instinto
lhe dizia claramente que era hora de
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sair dali.
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– Enfim, essa é a lula. - Disse ela, pondo a mão dentro do tanque e desligando a
iluminação
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especial. - Acho que é melhor voltarmos para onde
Katherine...
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Uma imensa mão apertou com força sua boca, puxando-lhe a cabeça para trás. No mesmo
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instante, um braço potente envolveu seu tronco,
prendendo-a contra um peito duro feito pedra.
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Durante uma fração de segundo, o choque deixou Trish
anestesiada. Então veio o terror.
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O homem tateou seu peito, agarrando seu cartão de acesso e puxando com força. O cordão
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queimou sua nuca antes de se partir. O cartão caiu aos pés dos dois. Ela lutou, tentando se
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desvencilhar, mas não era páreo para o tamanho e a força daquele homem. Tentou gritar, mas
a mão
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dele continuava a tapar-lhe a bora. Ele se abaixou, colando os lábios no seu ouvido e sussurrando:
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– Quando eu tirar a mão da sua boca, você não vai gritar, entendido?
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Ela balançou a cabeça vigorosamente, com os pulmões ardendo. Não consigo respirar!
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O homem retirou a mão de sua boca e Trish arquejou,
inspirando fundo.
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– Me solte! - P ediu ela, ofegante. - Que diabo está fazendo?
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– Me diga a sua senha. - Falou o homem.
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Trish estava completamente atônita. Katherine! Socorro! Que homem é esse?
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– A segurança está vendo você! - Disse ela, sabendo muito bem que
os dois estavam fora do
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alcance das câmeras. E ainda por cima não tem ninguém olhando.
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– A sua senha. - Repetiu o homem. - A que corresponde ao seu
cartão de acesso.
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Um medo gélido revirou suas entranhas e Trish girou o corpo com violência, soltando um dos
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braços e se virando para enfiar as unhas nos olhos do homem. Seus
dedos arranharam sua bochecha.
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Quatro talhos se abriram na carne dele. Trish então percebeu que aquelas listras
escuras não eram
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sangue. O homem estava usando maquiagem e, ao arranhá-la, ela havia revelado as tatuagens
escuras
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escondidas por baixo. Quem é esse monstro?!
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Com uma força aparentemente sobre-humana, ele
girou o corpo dela e a ergueu do chão,
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empurrando-a pela borda do tanque aberto e deixando seu rosto
logo acima do etanol. Os vapores
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queimaram suas narinas.
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– Qual é a sua senha? - Repetiu ele.
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Os olhos de Trish ardiam e ela pôde ver a carne pálida da lula submersa abaixo de seu
rosto.
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– Me fale. - Disse ele, aproximando mais seu rosto da superfície. - Qual é?
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A garganta dela agora ardia.
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– 0-8-0-4! - Disparou ela, mal conseguindo respirar. - Me solte!
0-8-0-4!
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– Se estiver mentindo... - Disse ele, empurrando-a mais para
baixo até seus cabelos tocarem o
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etanol. - Eu não estou mentindo! - Disse ela,
tossindo.
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– Dia 4 de agosto! É o meu aniversário!
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– Obrigado, Trish. - As mãos vigorosas apertaram ainda mais a
cabeça dela e uma força
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esmagadora a empurrou para baixo, mergulhando seu rosto no
tanque. Uma dor excruciante queimou
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seus olhos. O homem empurrou com mais força, afundando toda a cabeça dela no etanol. Trish sentiu
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o rosto ser pressionado contra a cabeça polpuda da lula. Reunindo todas as
suas forças, ela arqueou
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violentamente o corpo, vergando-se para trás numa tentativa desesperada de
tirar a cabeça do tanque.
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Mas as mãos poderosas não saíram do lugar.
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Preciso respirar!
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Ela continuou submersa, lutando para não abrir os olhos nem a boca. Seus
pulmões queimavam
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enquanto ela resistia à poderosa ânsia de respirar. Não! Não faça isso! Mas o reflexo de inalação de
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Trish finalmente a dominou. Sua boca se abriu por inteiro e seus
pulmões se expandiram
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violentamente, tentando sugar o oxigênio de que seu corpo precisava. Em
um jato ardente, uma onda
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de etanol penetrou sua boca. Quando o produto químico desceu por sua garganta até chegar aos
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pulmões, Trish sentiu uma dor que jamais imaginara ser possível. Misericordiosamente, a dor só
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durou alguns segundos antes de seu mundo cair na escuridão.
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A moça sem vida pendia da borda, com o rosto ainda mergulhado no
etanol. Ao vê-la ali,
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Mal'akh teve um lampejo da única outra mulher que havia matado.
Isabel Solomon.
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Muito tempo atrás. Em outra vida.
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Mal'akh então olhou para o cadáver flácido à sua frente. Segurou os quadris
largos da moça e
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deu um impulso para cima com as pernas, erguendo-a e
empurrando-a até ela deslizar pela borda do
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tanque. A cabeça de Trish Dunne escorregou para
dentro do etanol. O resto de seu corpo foi atrás,
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submergindo. Aos poucos, as ondulações da superfície cessaram, deixando a mulher a
flutuar,
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lânguida, por cima da imensa criatura marinha. À medida que suas roupas ficavam mais
pesadas, ela
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começou a afundar, boiando rumo à escuridão. Pouco a pouco, o corpo de Trish
Dunne se assentou
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sobre o grande animal.
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Mal'akh limpou as mãos e tornou a pôr a tampa de plexiglas, lacrando o
tanque.
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O Galpão Molhado tem um novo espécime.
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Ele recolheu o cartão de acesso de Trish do chão e o guardou no bolso: 0804.
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Quando Mal'akh viu Trish pela primeira vez na recepção, enxergou nela um risco. Depois se
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deu conta de que o cartão de acesso e a senha da moça eram a sua garantia. Se a sala de
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armazenamento de dados de Katherine fosse tão segura quanto Peter dera a
entender, então Mal'akh
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previa alguma dificuldade para convencê-la a destrancá-la para ele. Agora tenho as minhas
próprias
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chaves. Agradava-lhe saber que não precisaria mais perder tempo
tentando obrigar Katherine a fazer
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o que ele queria.
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Ao endireitar o corpo, Mal'akh viu o próprio reflexo na janela e percebeu
que sua maquiagem
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estava bastante estragada. Aquilo não tinha mais importância. Quando Katherine juntasse
todas as
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peças do quebra-cabeça, seria tarde demais.
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