terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Capítulo 5 (Sorte ou Azar)


Capítulo 5

- Nem dá para ver – disse tia Evelyn. – Bem, dá, mas com um pouquinho de maquiagem ninguém vai notar, juro. E na segunda-feira, quando você começar na escola, tenho certeza de que terá sumido. Estudei meu reflexo num espelho de mão. O hematoma em cima da sobrancelha direita tinha apenas algumas horas de vida e já estava ficando roxo. Por experiência, eu sabia que na segunda-feira o hematoma não seria roxo, e sim de um lindo tom de amarelo-esverdeado. - Claro – falei para que tia Evelyn se sentisse melhor. – Claro que terá. - Verdade – disse tia Evelyn. – Quero dizer, se eu não soubesse que ele está aí, nem notaria. E você, Tory? Sentada numa das duas poltronas cor-de-rosa ao lado da lareira que não funcionava, Tory disse: - Não consigo ver. Abri um sorriso débil para ela. Então não era minha imaginação, afinal de contas. Tory havia mesmo começado a ser mais legal comigo, espantosamente mais legal, desde que minha cabeça havia acertado a calçada. Depois que recuperei a consciência fiquei sabendo que foi Tory

quem ligou para emergência, depois de ter visto a coisa toda se desdobrar pela janela da sala de estar. Tory é que foi na ambulância comigo, enquanto eu estava apagada, porque Petra ainda tinha de pegar as crianças. Tory é quem estava segurando minha mão quando acordei, tonta e dolorida, na emergência do hospital. E foi Tory, junto com os pais dela, que me liberaram naquele fim de tarde, quando os exames do hospital revelaram que eu não havia sofrido uma concussão e que não teria de ser internada para passar a noite em observação (por acaso, o mensageiro de bicicleta havia escapado sem ao menos se arranhar, e a bicicleta nem se estragou muito).

Eu não fazia idéia do que havia ocorrido para deixar minha prima subitamente tão interessada no meu bem-estar. Certamente ela não parecia ter se importado comigo antes do acidente. Bem, eu não imaginava o motivo para Tory decidir se preocupar comigo, só porque eu havia sido idiota a ponto de ser nocauteada. No mínimo eu só provara o argumento de Tory: sou mesmo uma caipira. Claro, isso podia ter algo a ver com o fato de que Zach havia ido junto. Quero dizer, ao hospital. Comigo. Na ambulância. Mas não deixaram que ele entrasse na emergência para me ver, porque não era da família. E quando ficou sabendo que eu ia ficar bem, foi embora. Mesmo assim. Se o que Robert havia dito no caramanchão era verdade – que Tory era a fim do Zach –, aquelas foram algumas boas horas que os dois passaram juntos. Mas Zach não estava por perto naquele momento, e Tory ainda estava sendo legal comigo. Então qual era? Pousei o espelho e disse: - Tia Evelyn, estou me sentindo péssima. Você e o tio Ted realmente não precisam ficar em casa em vez de ir à festa por minha causa. Afinal de contas, é só um galo pequeno. - Ah, por favor – tia Evelyn balançou uma das mãos num gesto que demonstrava que aquilo não tinha muita importância. – Não era uma festa, mas um evento beneficente chato, para um museu chato e velho. Para dizer a verdade, adorei que você tenha nos dado uma boa desculpa para não ir. Tia Evelyn é a irmã mais nova da minha mãe, mas é difícil ver qualquer semelhança entre as duas. Verdade. O cabelo louro é o mesmo, mas enquanto mamãe usa o dela numa trança comprida que vai até o quadril, o de Evelyn é cortado num estilo Chanel muito fashion, que lhe cai muito bem. Nunca vi mamãe, que considera cosméticos uma coisa frívola – para irritação da minha irmã Courtney –, usando maquiagem. Mas tia Evelyn estava com batom, rímel, sombra – até um delicioso perfume floral. Ela parecia tremendamente glamorosa – e estava perfumada como uma diva. Nem parecia com idade para ter uma filha de 16 anos.

O que, acho, provava que a maquiagem estava dando certo. Tia Evelyn notou a caneca vazia ao lado da cama.

- Quer mais um pouco de chocolate quente, Jean? - Não, obrigada – eu ri. – Se tomar mais chocolate vou sair flutuando. Verdade, tia Evelyn, você e Tory não precisam ficar aqui sentadas comigo a noite toda. O médico disse que estou bem. É só um galo, e acredite, já tive um monte de galos antes. Vou ficar legal. - É que eu me sinto péssima – insistiu Evelyn. – Se a gente soubesse que você vinha hoje, e não amanhã, como pensamos... - Teriam feito o quê? – perguntei. – Mandado que todos os mensageiros da cidade fizessem greve? – Não que isso fosse dar certo. Eles ainda teriam me achado. Sempre acham. - Só que não é como eu tinha imaginado sua primeira noite aqui – Evelyn balançou a cabeça. – Petra ia fazer filé-mignon. A gente teria um belo jantar, toda a família junta, e não comida para viagem, na cozinha, depois de chegar de uma emergência de hospital... Olhei com simpatia para a cabeça inclinada da minha tia. Coitada da tia Evelyn. Agora estava começando a saber como minha mãe devia se sentir o tempo todo. Com relação a mim. Falei com sentimento: - Desculpe. - O quê? Desculpe? Está se desculpando por quê? Não é sua culpa... Só que, claro, era. Eu sabia o que estava fazendo. Sabia que a bicicleta ia me acertar, e não o Zach. Mas também sabia que a pancada não seria nem de longe tão ruim se tivesse sido no Zach. Porque eu estava esperando, e ele não. Por que outro motivo os gerânios pareciam tão vermelhos? Mas, claro, não falei isso em voz alta. Porque havia aprendido, há muito tempo, que dizer coisas assim em voz alta só levava a perguntas que era muito melhor não responder. - Toc-toc. – A voz do tio Ted veio flutuando pela porta fechado do quarto. – Podemos entrar? Tory se levantou e abriu a porta. No corredor estavam meu tio Ted, com Alice, de 5 anos, no colo, e Teddy Jr., de 10, escondido tímido atrás de uma das pernas de Ted.

- Tenho um pessoal aqui – anunciou tio Ted – querendo dar boa-noite à prima Jean antes de ir para a cama. - Bem – Evelyn pareceu preocupada. – Acho que só por um minutinho não tem problema. Mas... No instante em que o pai a colocou no chão, Alice deu um salto voador na direção da minha cama, balançando um pedaço de papel branco. - Prima Jinx, prima Jinx – ela sibilou . – Olha o que eu fiz pra você! - Cuidado, Alice – gritou tia Evelyn. – Cuidado! - Tudo bem – eu puxei Alice, que estava usando uma camisola florida, para a cama comigo, como eu costumava fazer com Courtney na época em que ela deixava, e como ainda faço algumas vezes com Sarabeth. – Deixe eu ver o que você fez para mim.

Alice mostrou com orgulho o desenho. - Olha, é uma pintura do dia em que você nasceu. Tem o hospital, olha, e essa é você, saindo da tia Charlotte. - Uau – tentei imaginar exatamente o que ensinam às crianças do jardim-de-infância em Nova York. – Sem dúvida é... explícito. - A porquinha-da-índia da sala dela teve neném – explicou tio Ted, como se pedisse desculpas. - E ta vendo aqui? – Alice apontou para uma grande mancha de tinta preta. – Essa é a nuvem de onde saiu o raio, o raio que apagou todas as luzes do hospital quando você nasceu. – Alice se recostou no meu braço, parecendo satisfeita consigo mesma. Consegui esboçar o que esperava ser um sorriso encorajador e convincente: - É uma pintura muito legal, Alice. Vou pendurar aqui mesmo, em cima da lareira. - A lareira não funciona – informou Teddy, falando alto, da ponta da cama. - Jean sabe disso – rebateu tio Ted. – De qualquer modo está ficando quente demais para acender lareiras, Teddy. - Eu falei a eles que esse era o melhor quarto para colocar você – disse Teddy. – Porque a lareira já está ferrada. Porque sempre que você está por perto, as coisas quebram. - Theodore Gardiner Junior! – gritou Evelyn. – Peça desculpas à sua prima agora mesmo! - Por quê? – perguntou Teddy. – Você mesma disse, mamãe. É por isso que todo mundo chama ela de Jinx.

- Eu conheço um certo mocinho que vai para a cama sem sobremesa – disse tio Ted. - Por quê? – Teddy ficou perplexo. – Você sabe que é verdade. Olha o que aconteceu hoje. A cabeça dela quebrou. - Tudo bem – tio Ted segurou o pulso de Teddy e arrastou-o para fora do quarto. – Chega de visitar a prima Jean. Venha, Alice. Vamos ver a Petra. Acho que ela tem uma historinha para contar a vocês dois. Alice encostou o rosto no meu. - Eu não me importo se as coisas quebram quando você está perto – sussurrou. – Gosto de você, e fico feliz porque está aqui – ela me beijou, com seu cheirinho de criança limpa de 5 anos. – Boa-noite. - Ah, minha querida – lamentou-se Evelyn quando a porta estava fechada de novo. – Não sei o que dizer. - Tudo bem – olhei a pintura de Alice. – É tudo verdade. - Ah, não seja ridícula, Jinx – disse minha tia. – É... Jean. As coisas não se quebram quando você está por perto. Aquilo na noite que você nasceu foi um, como é que se diz, mesmo? Um tornado, uma tempestade, ou algo assim. E hoje foi só um acidente. - Tudo bem, tia Evelyn. Não me importo. Verdade. - Bom, eu me importo. – Evelyn pegou a caneca vazia e se levantou. – Vou dizer às crianças para não chamar você de Jinx. De qualquer modo é um

apelido ridículo. Afinal de contas, você é praticamente adulta. Agora, se tem certeza de que não precisa de nada, Tory e eu vamos sair e deixar que você durma. E não vai sair da cama antes das dez da manhã, entendido? O médico disse para fazer bastante repouso. Venha, Tory. Mas Tory não se mexeu da poltrona. - Já vou num minuto, mãe. Evelyn pareceu não ter ouvido. - Acho melhor eu dar uma ligada para sua mãe – murmurou enquanto saía do quarto. – Só Deus sabe como vou explicar tudo isso. Ela vai me matar. Quando teve certeza de que a mãe não poderia mais ouvir, Tory fechou em silêncio a porta do quarto e se encostou nela. E me olhou com aqueles olhos grandes, azuis e pintados com delineador. - E então – disse ela. – Há quanto tempo você sabe?

Pousei a pintura que Alice tinha feito para mim. Já passava das nove horas e eu estava realmente cansada... mesmo ainda estando no fuso horário de Iowa, onde ainda nem eram nove horas. Fisicamente, eu estava bem, como havia garantido à tia Evelyn. O galo na cabeça nem doía, a não ser quando era tocado. Mas a verdade era que me sentia exausta. Só queria entrar naquele lindo banheiro de mármore, me lavar e me arrastar para minha cama grande e confortável e dormir. Só isso. Dormir. Mas agora parecia que eu teria de esperar. Porque, pelo jeito, Tory queria conversar. - Quanto tempo sei o quê? – perguntei, esperando que o cansaço não transparecesse na voz. - Bem, que você é uma bruxa, claro.

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