terça-feira, 15 de janeiro de 2013
Capítulo 6 (Sorte ou Azar)
Capítulo 6:
Pisquei para ela. Tory parecia perfeitamente séria, encostada na porta.
Ainda estava com o minivestido preto e a maquiagem continuava perfeita. Quatro
horas sentada numa cadeira de plástico na sala de uma emergência de hospital
não tinham feito nada para atrapalhar sua beleza. - Uma o quê? – Minha voz
embargou na palavra quê. - Uma bruxa, claro. – Tory deu um sorriso tolerante. –
Sei que é, não adianta negar. Uma feiticeira sempre conhece outra.,00 Comecei a
acreditar, não tanto pelo que Tory havia dito, mas pelo modo curiosamente tenso
com que ela mantinha o corpo – como o nosso gato Stanley sempre fazia lá em
casa, quando está se preparando para atacar –, que Tory falava sério. Essa é a
minha sorte. Seria legal se ela só estivesse brincando.
Escolhi as palavras com cuidado: - Tory, desculpe, mas estou cansada, e
realmente quero dormir. Talvez a gente possa falar sobre isso outra hora,
certo? Foi a coisa errada a dizer. De repente, Tory ficou furiosa. - Ah – ela
se empertigou. – Ah, então é assim, não é? Você acha que é melhor do que eu
porque está treinando há mais tempo, é? É isso? Bom, deixe-me dizer uma coisa,
Jinx. Por acaso sou a bruxa mais poderosa do meu grupo de bruxas – do meu
conven, sabe. Gretchen e Lindsey? É, elas não têm nada do meu nível. Ainda
estão fazendo feitiços de amor idiotas. Que não funcionam, por sinal. Na escola
tem gente com medo de mim, de tão forte que sou. O que acha disso, senhora
todo-poderosa? Meu queixo caiu. O negócio é que eu deveria saber. Não sei por
quê – quando mamãe contou a tia Evelyn sobre o que havia acontecido, e tia
Evelyn sugeriu que eu poderia ficar um tempo em Nova York – pensei que estaria
segura aqui. Eu deveria saber. Deveria mesmo. - Isso é por causa do que
aconteceu esta tarde? – perguntou Tory. – O lance da maconha? Você ficou com
raiva porque descobriu que eu uso drogas?
Ainda perplexa, até mesmo traída, mesmo sem saber o motivo – tia Evelyn não
podia fazer idéia do que sua filha estava aprontando, caso contrário teria
posto um ponto final –, falei: - Não, Tory, de verdade. Não me importa o que
você faz. Bom, aliás, eu me importo. E acho estupidez ficar tomando remédios
que não foram receitados para você... - A Ritalina é só para eu passar pelas
provas – interrompeu Tory. – E o Valium é só... bem, algumas vezes tenho
dificuldade para dormir. Só isso. – Tory havia atravessado o quarto, e agora
afundou na cama. – Não sou do tipo que pega pesado, nem nada. Não uso ecstasy,
nem cocaína, nem nada assim. O que é? Seu conve é contra usar drogas, ou algo
assim? Meu Deus, isso é tão antiquado! - Tory – eu não conseguia acreditar que
isso estava acontecendo –, eu não pertenço a um conven, certo? Só quero ficar
sozinha. Sem ofensas, mas estou cansada de verdade. Agora foi a vez de Tory
piscar e, quando fez isso, ficou tão parecida com uma coruja, me olhando como
se eu fosse uma daquelas torneiras de cisne no banheiro que tivesse começado a
falar de repente. Por fim, disse: - Você realmente não sabe, não é? Balancei a
cabeça. - Não sei o quê? - Que é uma de nós. Você deveria ter suspeitado.
Afinal de contas, as pessoas chamam você de Jinx. - É, elas me chamam de Jinx –
respondi com uma amargura que não tentei disfarçar – porque, como disse o seu irmãozinho,
tudo que eu toco estraga. Mas Tory estava balançando a cabeça. - Não. Não
estraga. Hoje não estragou. Jinx, eu olhei você. Estava falando ao
telefone com mamãe, e entrei em casa e vi a coisa toda, da sala de estar. –
Os olhos de Tory estavam tão brilhantes que pareciam cintilar à luz suave do
abajur. – Foi como se você soubesse o que ia acontecer antes que alguém fizesse
alguma coisa. Você tirou o Zach do caminho ANTES que a bicicleta batesse na
calçada. Você não sabia que o mensageiro ia virar naquela direção. Mesmo assim
sabia. Alguma parte de você sabia... - Claro que uma parte de mim sabia –
falei, frustrada. – Eu tenho muita experiência. Se estou por perto, a pior
coisa possível pode acontecer, vai acontecer. É a história da minha vida. Não consigo
não estragar as coisas, sempre há algo a estragar. - Você não estragou nada,
Jinx. Você salvou a vida de uma pessoa. A vida do Zach. Balancei a cabeça de
novo. Era incrível. Era disso que eu tinha vindo me livrar aqui. E agora estava
começando tudo de novo. Minha prima Tory, a última pessoa no mundo que eu teria
suspeitado, estava tentando começar a coisa toda de novo. - Olha, Tor, você
está fazendo uma tempestade em copo d’água. Eu não... - Sim, Jinx. Sim, você
fez. É o que Zach disse. Se você não tivesse feito o que fez, Zach seria uma
panqueca no asfalto. De repente meu estômago estava doendo mais do que a
cabeça. - Talvez... - Jinx você vai ter de encarar. Você possui o dom. Minha
respiração congelou na garganta. - O... o quê? - O dom – repetiu Tory. – Vovó
nunca lhe contou sobre Branwen? Soltei um riso nervoso. O que mais poderia
fazer? - Quer dizer aquela história maluca sobre a tataravó dela, ou sei lá
quem? – Tentei demonstrar o máximo de escárnio possível. – Qual é, Tory. Não
diga que acredita naquela baboseira. É só uma história maluca que vovó inventa
quando as coisas estão chatas no grupo de bridge dela lá em Boca... - Não é
baboseira – Tory pareceu irritada. – E não é uma história maluca. Nossa
tata-tataravó Branwen era uma feiticeira, lá no País de Gales. E Branwen contou
à filha, que contou à filha, que contou à filha, que contou à vovó, que a
primeira filha da filha dela... isso só acontece com as primeiras filhas...
teria o dom. O dom da magia. Algumas vezes o dom pula algumas gerações, acho.
Tipo, você, tem o cabelo ruivo de vovó, mas nem sua mãe nem a minha têm. Minha
mão foi defensivamente para o cabelo, como sempre acontecia quando alguém
falava dele. - Tory, realmente não...
- Você não vê? Nossa tata-tata-tata-tataravó Branwen estava falando de nós.
Nós somos a próxima geração de bruxas da família. Ah, cara. Respirei fundo. O
nó no estômago havia se transformado numa bola de boliche oficial. - Sem
ofensas, Tory. Mas acho que você andou vendo episódios demais de Charmed. Ou
isso ou ainda está na onda desde que saiu do caramanchão.
Tory suspirou. - Acho que terei de provar, não é? Olhei-a, nervosa. - Como
vai fazer isso? - Não se preocupe – ela riu. – Não vou fazer o colchão levitar
nem nada. – Ela desceu da cama e foi para a porta. – A coisa não funciona
assim. Fique aqui. – Ela foi para o corredor. Fantástico. Agora minha prima
Tory acha que é bruxa. Isso era tão... típico. Pelo menos da minha sorte. Sem
saber o que fazer, peguei o espelho de mão e olhei de novo para o hematoma. Não
havia dúvida. Era um hematoma, e não um galo. Era horrendo e de jeito nenhum
iria sumir a tempo do meu primeiro dia de aula. Minha escola nova, exclusiva e
PARTICULAR em Manhattan. Sempre que eu pensava nela, me dava vontade de
vomitar. Ah, bem. Para começar, não sou nenhuma rainha da beleza. Como foi que
Shawn, o amigo de Tory me chamou? Ah, é. Ruiva. Era isso que eu deveria esperar
na segunda-feira? Gente zombando de mim porque tenho cabelo ruivo e venho de um
estado tradicionalmente rural? Estou destinada a ser a prima Jean de Iowa pelo
resto da vida? Bem, é melhor do que ser chamada de Jinx. Acho. Tory voltou para
o quarto trazendo uma caixa de sapatos. Fechou a porta e pôs a caixa em cima da
cama. Havia algo no modo delicado como ela manuseava a caixa que fez a bola de
boliche no meu estômago parecer que se transformava em algo ainda maior. Uma
bola de basquete, talvez. - Se você abrir a tampa dessa caixa – falei – e
alguma coisa pular em cima de mim, juro que mato você.
- Nada vai pular em cima de você. Não seja idiota. – Tory sentou-se e tirou
cuidadosamente a tampa. Peguei-me inclinada para a frente, num esforço para ver
o que estava no meio daquele papel de seda, mesmo tendo quase certeza de que
não queria saber. Então Tory enfiou a mão na caixa e pegou... ... um boneco.
Minhas entranhas se reviraram. Mal consegui sair da cama e ir até o vaso
sanitário antes que cada pedaço do frango kung pão e das costeletas que eu
havia comido uma hora antes saltassem para fora. Não sei quanto tempo fiquei
ali, arfando. Mas quando saí do banheiro – tenho de admitir que sentindo-me um
pouco melhor, pois o emaranhado de nervos no meu estômago do tamanho de uma
bola de basquete havia se encolhido até o tamanho de uma castanha – Tory ainda
estava sentada na beira da minha cama, com o boneco no colo. Tentei afastar os
olhos daquele boneco. - Você está legal? – perguntou Tory, parecendo
genuinamente preocupada. Só confirmei com a cabeça e me arrastei de volta para
baixo das cobertas. Os lençóis – que eram muito mais macios do que os da minha
casa – estavam frescos e davam alívio à pele.
- Isso foi nojento – comentou Tory. - Eu sei – respondi, com a cabeça
afundando nos travesseiros fofos e de alta densidade. – Desculpe. - Quer que eu
chame a minha mãe? - Não – fechei os olhos. – Vou ficar legal. - Não acho boa
idéia ficar mexendo com bruxaria, Tory. - Por quê? – Tory pareceu genuinamente
surpresa. – Está no nosso destino genético. E vem funcionando, você sabe. Ele
não namora ninguém desde que eu fiz o boneco. E vem aqui depois da escola
praticamente todo dia. Pensei no que Robert e os outros haviam dito. Um motivo
muito mais provável para Zach vir à casa dos Gardiner todo dia poderia ser o
fato de Petra estar lá, e não o fato de Tory ter feito aquele boneco. Mas não
falei em voz alta. Só disse: - Parece, bem... não sei. Um tipo de assédio. -
Bem – zombou Tory –, você deve saber dessas coisas.
Abri os olhos para lhe lançar um olhar feio, mas não falei nada. O que
poderia dizer? Ela estava certa. Em mais sentidos do que imaginava. - Tanto faz
– Tory deu de ombros. – Olha isso. Então ela tirou uma agulha que estivera
enfiada na caixa de sapatos e cravou na cabeça do boneco Zach. - Ei! – gritei,
sentando ereta na cama, com o coração martelando. – O que você está fazendo? -
Relaxa. Estou furando os pensamentos dele. Viu? Agora ele só consegue pensar em
mim. Vou admitir que meio que esperei algum tipo de berro vindo do quarto do
Zach na casa ao lado. Felizmente só escutei o borbulhar da fonte no jardim lá
embaixo e uma sirene de polícia em algum lugar da cidade. - Nossa! – Fiquei
olhando Tory girar a agulha no crânio recheado de algodão de Zach. – Eu não
teria tanta certeza de que é em você que ele está pensando. Acho que ele está
pensando em tomar um analgésico. - Zach não está namorando ninguém desde que eu
fiz esse boneco. - Você já disse isso. – Então, com relutância, porque não
sabia direito como Tory iria reagir, perguntei: – Mas ele já convidou você para
sair? - Bem – Tory guardou o boneco de novo na caixa de sapatos. – Não
exatamente. Mas eu já disse, ele vem aqui todo... ... dia depois da escola. É,
você disse isso também. – Balancei a cabeça. – Olha, sinto muito, Tor, mas
esse... esse lance de bruxaria... Não é boa idéia. Confie em mim. Certo? - Não
é um lance de bruxaria. E não é uma idéia. É um fato. Eu sou uma bruxa. Você
provavelmente também é, sendo uma primogênita. A castanha no meu estômago havia
se transformado numa laranja. - Tory. Quero dizer, Torrance. Sério. Podemos
falar sobre isso outra hora? Porque realmente não estou me sentindo muito bem.
Tory recolocou a tampa da caixa.
- Se você estiver sentindo alguma coisa, só pode ser alívio. Em saber que,
finalmente, não está sozinha. – Tory se inclinou para frente e pôs a mão sobre
a minha. – Você não é uma aberração, Jinx. Se ao menos ela soubesse! - Nossa.
Obrigada. Isso é... reconfortante.
— Sei que é muita informação para ser digerida de uma vez só – continuou
Tory. – E vou admitir que foi um choque para mim, também. O fato é que desde
que vovó me contou essa história pela primeira vez, em nossa última visita à
Flórida, achei que era eu. Que era de mim que Branwen estava falando, a neta a
quem seu dom seria passado. Mas não há como negar que, depois do que vi hoje,
você, Jinx, também tem o dom. E precisa admitir que é bem provável que, depois
de passar por tantas gerações, a previsão de Branwen possa ter se embolado um
pouco. Ela devia ter falado das filhas das filhas de vovó. E não da filha da
filha. Porque vovó tem duas filhas, e cada uma tem uma filha. Por isso, devemos
ser nós duas. Nós duas somos feiticeiras. Pode haver espaço para duas bruxas
numa geração, não é? Sem esperar minha resposta, Tory continuou: — Então, agora
você só precisa aprender a usá-lo. Quero dizer, o dom que Branwen deixou para
nós. Posso ajudar você totalmente com isso. Você só precisa ir a uma reunião do
nosso conven. Com nossos poderes, quer dizer, com o seu e o meu combinados, não
há como saber o que poderemos fazer. Dominar a escola, para começar. Mas por
que parar por aí? Meu Deus, Jinx. A gente podia dominar o mundo. Reagi
depressa: — Não. Tory ficou surpresa. — Por quê? — Porque – respirei fundo de
novo. Ela ia ficar com raiva. Eu sabia. Mas a raiva era melhor do que ela
descobrir a verdade – não acho que mexer com magia seja uma coisa boa, sabe? Quero
dizer, não sei muito sobre isso, mas digamos que seja realmente verdade, que
nossa tata-tata-tata-não sei das quantas fosse uma feiticeira, e que tenha
passado seus poderes para nós. Seria realmente justo a gente usar isso para
prender os caras? Quero dizer, pelo que sei sobre bruxaria, ela não exige que
os praticantes usem o poder para fazer o bem, e não o mal?
— Como pode ser ruim fazer o cara de quem você gosta ficar a fim de você? –
Tory revirou os olhos. – Por favor. Nem começa a me falar sobre aquela besteira
de respeitar a natureza, cultuar as árvores... Tive de me segurar par não lhe
dar um tapa. — Não é besteira – contive minhas mãos, com esforço. – Pelo que
sei, feitiços tem tudo a ver com usar a natureza, a energia da natureza. Se
você não respeita aquilo de onde está tirando seu poder, esse poder se vira
contra você. E se estiver usando esse poder para alguma coisa negativa, como
esse seu boneco, cujo objetivo básico é roubar o livre-arbítrio do Zach de
gostar
de quem ele quiser, então você terá negatividade de volta. Tory não pareceu
mais surpresa. Agora estava furiosa. Os lábios bonitos dela haviam praticamente
sumido, tamanha a força com que os apertou. — Ótimo – disse ela. – Ótimo. Eu
esperava que você tivesse a mente um pouco mais aberta com relação a isso.
Afinal de contas, é a sua herança. Mas se quiser ser uma caipira sem
sofisticação durante a vida toda, a decisão é sua. Só lembre, Jinx. Nós
estaremos aqui quando você mudar de idéia. Ela se levantou, segurando a caixa
que continha o boneco do Zach, e foi andando. — Na verdade – acrescentou quando
chegou à porta –, nós estamos em toda parte. Como se eu já não soubesse.
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