terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Capítulo 8 (Sorte ou Azar)


Capítulo 08

Foi quando eu estava derramando a areia usada de Mouche num saco de lixo que vi. Tarefas. Elas eram importantíssimas no lar dos Gardiner. Não porque houvesse tantas. Era porque havia tão poucas. Graças a Petra, a au pair, Marta, a empregada, e Jorge, o jardineiro, não restava muita coisa para a gente fazer na casa. Mas tia Evelyn e tio Ted acreditavam, tanto quanto meus pais, que os filhos precisavam aprender a ter responsabilidades, de modo que alguns dias depois da minha chegada – assim que o hematoma teve chance de sumir – houve alguma discussão sobre qual seria a minha ―tarefa‖. — Ela não pode ficar com o meu trabalho – havia declarado Teddy. Estávamos comento o filé-mignon que Petra havia prometido fazer na noite da minha chegada... só que com algumas noites de atraso. – Sou encarregado de esvaziar a lavadora de pratos quando Maria não está aqui e de alimentar os koi. E gosto dos meus trabalhos. — Ela pode ficar com os meus trabalhos – murmurou Tory. Justo naquela manhã ela havia decidido que era vegetariana e tinha obrigado Petra a lhe preparar tofu em vez do filé-mignon. E me pareceu que estava se arrependendo da decisão, se o modo como olhava para o meu bife indicava alguma coisa. – Encher a lavadora de pratos e de cuidar da caixa de areia da gata. Não sei por que eu tenho de limpara a caixa da gata todo dia. Tia Evelyn olhou sombria para Tory. — Porque foi você que quis a gata. Você disse que assumiria toda a responsabilidade por ela. Tory revirou os olhos. — Aquela gata é o animal mais ingrato que eu já vi. Ela dorme com Alice toda noite, mesmo que seja eu quem lhe dê comida e limpe a caixa. Alice, que estava comendo seu filé-mignon estilo hambúrguer, entre duas fatias de pão branco e encharcado de ketchup, rebateu indignada: — Talvez se você não gritasse com Mouche o tempo todo porque solta pêlos em suas roupas pretas ela quisesse dormir mais com você. Tory revirou os olhos de novo: — Só dêem a Jinx a tarefa da caixa da gata.

Tia Evelyn não aprovou o novo arranjo – eu ficar com o serviço de Tory, de monitorar a caixa de areia de Mouche –, mas foi o que aconteceu. Também me ofereci para ficar com Teddy e Alice na tarde em que o horário de aulas de Petra não lhe permitia voltar à cidade a tempo, uma tarefa formalmente realizada por Marta... Acho que porque ninguém tinha conseguido obrigar Tory a fazer isso. Nem mesmo seus pais. Mas, afinal, não me incomodei, exatamente. Gostava mesmo dos meus primos mais novos, porque me lembravam dos meus irmãos menores, de quem eu sentia muito mais falta do que havia imaginado – a aspirante a

modelo Courtney, de 13 anos; o fanático por beisebol Jeremy, de 10; Sarabeth de 7 anos, obcecada pelas Bratz; e especialmente Henry, de 4 anos, o bebê da família. Ter tarefas a realizar, como as que eu havia deixado para trás, fez com que eu me sentisse menos solitária e mais fazendo parte da família Gardiner, o que, por sua vez, fazia com que eu sentisse menos falta da minha. Mesmo assim, quando o dia da semanada chegou e tia Evelyn me deu uma nota de cinqüenta dólares nova em folha, eu soube que não estava mais em Iowa. Olhando para o dinheiro, perguntei: — Para quê é isso? – pensando que ela devia querer o troco. — Sua semanada. – Tia Evelyn entregou uma nota idêntica a Tor. Teddy e Alice, cujas necessidades financeiras aparentemente eram menos dramáticas, receberam uma nota de vinte e uma de dez, respectivamente. — Mas... – Olhei para a nota. Cinqüenta dólares? Em troca de limpar a caixa de areia de Mouche e pegar as crianças na escola uma vez por semana? – Não posso aceitar isso. A senhora já paga a escola, deixa eu ficar aqui e tudo o mais...

Eu suspeitava de que os Gardiner tinham feito mais do que isso, até. Não podia ter certeza, mas achava, pelas coisas que ouvi na escola, que não era qualquer um que era aceito na Chapman. Havia uma lista de espera, e pelo jeito eu havia pulado à frente, devido a uma ―doação‖ que os Gardiner haviam feito em meu nome. Não sei se meus pais sabiam disso, mas certamente eu sabia, o que me deixou mais consciente do que nunca do quanto eu devia aos Gardiner. Em especial porque eu havia trazido junto o motivo para minha necessidade da transferência para a Chapman. Eu não merecia nem mais um centavo do dinheiro deles. Mas parecia que eles achavam o contrário. — Honestamente, Jean – disse tia Evelyn –, eu lhe devo pelo menos isso só por cuidar do Teddy e da Alice toda quarta-feira. Qualquer babá em Manhattan cobraria muito mais. — É, mas... – tipo, eu vinha cuidando dos meus irmãos, de graça, durante a vida inteira. – Verdade, acho que não... — Meu Deus, Jinx. – Tory balançou a cabeça, incrédula. – Você pirou? Pega logo o dinheiro. — Concordo – disse tia Evelyn. – Pegue o dinheiro, Jean. Tenho certeza de que neste fim de semana você vai querer ir ao cinema ou alguma coisa com seus novos amigos da escola. Aproveite. Você merece. Não observei exatamente que não tinha novos amigos da escola. Ah, havia o pessoal da orquestra, que gostava de mim, depois que eles superaram o fato de uma estranha ganhar o posto de segundo violino logo no primeiro dia. Se você consegue tocar um instrumento, sempre vai se dar bem com o pessoal da orquestra.

E havia Chanelle, com quem eu me sentava na hora do almoço. Mas na verdade, ela era amiga de Tory – ainda que não participasse do lance coven de Tory, Gretchen e Lindsey, e só parecia estar ali, na verdade, porque era onde seu namorado, Robert, se sentava com Shawn. Tory também me deixava sentar junto, mas nunca sem dar a impressão de que, ao permitir isso, estava me concedendo um favor gigantesco. Eu sabia que ela preferiria que eu me sentasse com o pessoal da orquestra. Eu também preferiria me sentar com eles. Mas não conseguia pensar num modo de fazer isso sem provocar um comentário sarcástico de Tory. Porque, mesmo sabendo que ela não me queria ali, tinha certeza de que ela gostaria ainda menos se eu a abandonasse. Ela não havia sido exatamente a Sra. Amigável desde a conversa sobre Branwen. Mesmo assim, mesmo sentindo que não era justo, arranjei um uso para meu súbito ganho financeiro no primeiro dia em que troquei a areia da caixa de Mouche. Os Gardiner gostavam daquele tipo de areia que formava bolos, que é fácil limpar, já que só é preciso raspar com uma pazinha com ranhuras. Mas ou a areia era de qualidade inferior ou Tory não a trocava há muito tempo, porque, não importando o quanto eu raspasse, ainda fedia... muito. O odor de amônia da urina de gato literalmente enchia a lavanderia onde ficava a caixa de areia. Senti pena de Marta, que tinha de lavar roupa ali. Assim, achei um saco de areia de gato fechado e decidi dar a Mouche um suprimento novo, depois de jogar fora o velho. A princípio não entendi o que via. Achei que tinha de ser um acidente. Depois vi a fita adesiva e percebi que não havia sido acidental. Larguei a caixa vazia como se ela tivesse pegando fogo.

Porque, mesmo eu tendo jogado fora toda a areia velha, a caixa não estava vazia. Não completamente. Presa com fita adesiva no fundo, previamente escondida sob vários centímetros de areia de gato velha e fedorenta, havia uma foto. Uma foto que, apesar de arranhada e consideravelmente desbotada, eu podia ver que era de Petra. Não pude acreditar. Realmente não pude acreditar. Porque eu sabia quem tinha posto a foto ali. Também sabia por quê. Só não podia acreditar que alguém – qualquer pessoa – seria tão má. Talvez, pensei, enquanto descolava cuidadosamente a foto do fundo da caixa, Tory não soubesse o que estava fazendo. Ela não podia saber. Ninguém que soubesse o que algo assim poderia fazer a alguém iria ao menos tentar... nem mesmo contra o pior inimigo... Ah, certo. Quem eu estava tentando enganar? Tory sabia exatamente o que estava fazendo. Motivo pelo qual eu sabia que não tinha opção além de tentar impedi-la... fosse como fosse. Mesmo que isso significasse quebrar minha promessa.

E, tudo bem, tinha sido só uma promessa a mim mesma. Mas algumas vezes essas são as mais difíceis de quebrar. Descobri na Internet o que eu precisava... uma loja – uma loja de verdade – que vendia o que eu estava procurando. Em Hancock, uma loja assim certamente seria fechada por cidadãos ultrajados. Mas em Nova York aparentemente isso não era motivo de preocupação. A loja, que ficava no East Village, fechava às sete. Eu tinha duas horas para pensar em como chegaria lá. O metrô era a escolha mais lógica, mas como eu nunca havia andando de metrô em Nova York, a idéia de fazer isso me encheu de terror. O problema era: o que poderia acontecer se eu não fizesse a viagem me enchia mais ainda de terror... só que por motivos diferentes. Assim pesquei um mapa do metrô numa gaveta da cozinha, onde eu sabia que tia Evelyn guardava esse tipo de coisa, e saí de casa, estudando o mapa cuidadosamente enquanto andava.

Tinha dado aproximadamente três passos quando alguém estendeu a mão e amassou o mapa na minha frente. Com o coração martelando, levantei os olhos... ... e quase tropecei quando vi que era Zach Rosen. — Não ande pelas ruas de Nova York com a cabeça enfiada num mapa do metrô. As pessoas vão saber que você é de fora da cidade, e vão tentar se aproveitar. Depois de ter passado todas as aulas de educação física daquela semana matando o Desafio Presidencial com ele, explorando as iguarias do que Zach chama de Cafés Guarda-Sol do Central Park, inclusive o delicioso – e misterioso – souvlaki, senti-me confortável o bastante para perguntar. — Preciso ir ao East Village. Sabe que metrô devo pegar? Zach, que havia tirado a mochila do ombro e obviamente estava acabando de chegar de algum lugar, mesmo assim pendurou-a de novo. — Vamos. Certo, ESSA não era uma resposta que eu tivesse previsto. — Não – quase gritei, desnorteada. Porque ele era a última pessoa que eu queria que soubesse onde eu estava indo. Não porque ainda estivesse caída por ele... o que eu estava, claro, mesmo sabendo que isso era completamente inútil. Na verdade, no dia anterior eu tinha conseguido que Zach admitisse que estava apaixonado por Petra. A conversa – que havia acontecido na cozinha dos Gardiner depois das aulas, onde eu o encontrei se recuperando de um jogo de bola com Teddy na frente da casa – tinha sido assim: Eu (juntando toda a coragem, depois de Petra ter finalmente saído da cozinha com Teddy, para supervisionar a lavagem de suas mãos excepcionalmente sujas antes de deixar que ele provasse os biscoitos que ela havia acabado de fazer): – Então, é verdade que você é apaixonado por Petra?

Zach (engasgando com um biscoito): – Por que você acha isso? Eu: – Porque Robert disse, no dia em que conheci vocês, que esse é o único motivo para você vir aqui.

Zach: – E, como sabemos, Robert é uma autoridade consumada em todas as coisas, tendo uma percepção extremamente aguçada que não é de modo algum comprometida por substâncias que alteram a mente. Eu (com o coração batendo rápido): – Quer dizer que o Robert está errado? Você nunca gostou de Petra? Zach: – Devo admitir que houve um tempo em que achei Petra bem interessante. Eu (nem um pouco com ciúme, porque Petra realmente é interessante, além de gentil e uma cozinheira fantástica): – Mas ela tem namorado. Zach: – Eu sei. Conheci o cara. Willem. É um cara bem legal. Eu: – Mas você continua vindo aqui. Zach (levanta-se): – O fato de eu vir aqui incomoda você? Porque posso ir embora. Eu (em pânico): – Não! Só que... você sabe. Fico pensando por que você ainda vem aqui. Se sabe que ela tem namorado. Zach (estendendo um biscoito): – A quantidade de coisas boas preparadas aqui não é desculpa suficiente? Eu: – Admita. Você ainda acha que tem chance com ela. Zach: – Há alguém nesta casa com quem você acha que eu teria mais chance? Eu (pensando em Tory, com quem ele definitivamente tem mais chance, mas de quem ele definitivamente deveria ficar longe, considerando aquele boneco): – Acho que não. Zach (parecendo achar divertido): – Bom, então...

O negócio é que nem me importo se ele ama Petra. Porque, para começar, isso nos dá bastante assunto – não que a gente tenha carência nesse quesito, pois parecemos ter a mesma opinião sobre um monte de coisas, como política, comida, música (se bem que Zach não era muito familiarizado com música clássica), um ódio contra qualquer tipo de esporte organizado e contra o jeito deplorável com que a qualidade do seriado Seventh Heaven havia caído depois que Jessica Biel deixou de ser parte do elenco em tempo integral.

Mas nas raras ocasiões em que há uma calmaria na conversa, eu sempre podia mencionar algo relacionado a Petra – como, por exemplo, sugerir que Zach fizesse aulas de alemão para surpreendê-la perguntando como ela estava, em sua língua nativa, ou algo assim. Pessoalmente acho que ele realmente apreciou minha ajuda na tentativa de conquistá-la. E eu, por minha vez, realmente apreciava o fato de que não precisava me preocupar com a aparência nem como agia perto dele. Não importava que meu short da escola CHapman fosse tão medonho, ou que eu entrasse no

caminho dos patinadores quase diariamente e que ele precisasse me puxar para a segurança. Porque ele não estava interessado em mim nesse sentido. Éramos só amigos. Quando eu estava com Zach, podia esquecer todas as coisas horríveis das quais vivia fugindo, e simplesmente relaxar. Meu estômago nem doía quando eu estava com ele... bem, a não ser que por acaso eu pegasse a mente vagueando e imaginasse o que poderia acontecer se de algum modo Petra desaparecesse de cena, e Zach – milagre dos milagres – por acaso pensasse em mim como algo mais do que uma amiga. Era então que meu estômago embolava. Porque, claro, ele havia deixado evidente como se sentia com relação a bruxas e bruxaria, e havia... Bem. O meu passado. E havia Tory. Mas eu tentava falar dela o mínimo possível. Ainda não sabia se Zach sabia o quanto ela gostava dele – ou se, deixando de lado o negócio de bruxa, se ele poderia gostar dela também. Na verdade eu não sabia como qualquer cara não ficaria lisonjeado ao saber que uma garota linda como Tory gostava dele. Mesmo assim, mesmo sendo verdade que Zach e eu éramos amigos, não éramos amigos a ponto de discutir a paixão de Tory por ele – e definitivamente não éramos amigos a ponto de eu deixar que ele soubesse aonde eu ia naquele dia. — Não, não precisa ir comigo – falei rapidamente. – Pode só me informar como eu chego à rua Nove entre a Segunda Avenida e a Primeira? Mas ele simplesmente balançou a cabeça.

— Na-nã-não. Você não vai até lá sozinha. As pessoas chamam você de Jinx por algum motivo, não é? Só Deus sabe que tipo de desastre poderia acontecer. — Mas... — Se acha que vou deixar você ir ao East Village sozinha, pirou de vez. – Ele segurou meu braço e me girou. – Para começar, ainda lhe devo servidão eterna por ter salvado minha vida, lembra? E, além disso, a estação de metrô fica daquele lado, idiota. Vamos. Não há nada de romântico em ser chamada de idiota. Fala sério! Especialmente porque eu sabia que de jeito nenhum Zach iria se interessar por uma violinista ruiva, filha de pastora, quando houvesse a mais remota chance de ele ter Petra, a lindíssima estudante de fisioterapia. Então por que me senti tão ridiculamente feliz por todo o caminho? Tinha esquecido toda a minha raiva de Tory – e o nojo de mim mesma por quebrar a promessa, como sabia que ia fazer. Mal notei as hordas da hora do rush em que nos enfiamos enquanto entrávamos no trem, e não prestei a mínima atenção aos homens que pediam dinheiro no vagão nem às placas dizendo para os passageiros ter cuidado com as carteiras, nem aos policiais nas plataformas com seus cães farejadores de bombas... coisas que poderiam ter me aterrorizado – se não estivesse com Zach. Ah, vamos encarar os fatos. Claro, ele gostava de outra garota. Mas eu estava entregue de qualquer modo. Ele havia me ganhado com aquele Gosto

de focas. Mas quando finalmente chegamos a rua Nove Leste entre a Segunda Avenida e a Primeira, percebi que Zach ia realmente me achar idiota – ou pelo menos seriamente perturbada – quando visse o tipo de loja para onde eu ia. Mas quando finalmente chegamos a rua Nove Leste entre a Segunda Avenida e a Primeira, percebi que Zach ia realmente me achar idiota – ou pelo menos seriamente perturbada – quando visse o tipo de loja para onde eu ia.

Diminuí o passo enquanto chegávamos perto. Pude ver a placa, cortada na forma de uma lua crescente, pendurada em cima de um toldo preto. ENCANTOS, estava escrito. O que eu diria quando ele perguntasse – como faria sem dúvida – por que eu iria a uma loja especializada em... bem... material de bruxaria? Zach estava me falando de um documentário que tinha visto na véspera, sobre uma equipe de cirurgiões plásticos que vão a países do Terceiro Mundo fazer cirurgia corretiva gratuita em crianças com palatos fendidos e coisas assim. Zach adora documentários. Quer estudar cinema quando entrar na Universidade de Nova York e fazer documentários sobre a vida animal do ártico, tipo focas, e sobre como estamos destruindo o habitat deles. Até havia me levado para ver suas focas – a dos zoológico do Central Park. Ele sabe o nome de todas e é capaz de identificar cada uma delas. Escutei seu resumo do documentário com apenas meio ouvido. Estava tentando dizer a mim mesma que Zach não iria se importar com a loja aonde eu ia. Verdade, eu estava exagerando a coisa demais. Éramos amigos. Amigos não se importam com o tipo de livro que os amigos lêem, não é? Mas, assim como eu suspeitava que fosse acontecer, Zach ficou mudo quando parei na frente da loja. Não ajudou nem um pouco o fato de haver cristais e cartas de tarô na vitrine, arrumados num monte de veludo preto. Nem ajudou o fato de que, enquanto estávamos ali parados, a porta se abriu e duas mulheres totalmente vestidas de preto, com o cabelo tingido como o de Tory, saíram carregando sacos de papel e batendo papo animadas. — Era aqui que você queria vir? – perguntou Zach, com as sobrancelhas escuras levantadas. De modo desaprovador, como eu havia suspeitado. — Eu... – Eu havia passado a maior parte da caminhada pela rua Nove inventando uma história que esperava ser convincente. – Tenho de comprar uma coisa para minha irmã menor... — Courtney? – perguntou ele. – Ou Sarabeth?

— Courtney – respondi, tentando ignorar o jorro de prazer por ele se lembrar do nome da minha irmã. O nome das minhas duas irmãs! Eu só havia lhe contado um milhão de histórias sobre elas. Não podia acreditar que ele tivesse escutado. – O aniversário dela está chegando, e achei que ela gostaria disso, além do mais acho que não dá para achar um livro desses em Iowa. Espera. Isso pareceu tão débil para ele quanto para mim? Mas tudo que Zach disse, em voz divertida, foi:

— Já ouviu falar da livraria Barnes and Noble? Fica só a dois quarteirões de onde a gente mora. A gente não precisaria vir até aqui, você sabe. — Abençoados sejam – disse a mulher bonita, de cabelos escuros, que estava atrás do balcão, quando entramos. — Ah – respondi, ficando vermelha. Por causa do que Zach devia estar pensando, que ela era tipo Nova Era, comedora de granola. – Obrigada. Passei rapidamente pelo balcão, indo às cegas para o fundo, onde tinha visto algumas prateleiras de livros. Mesmo assim não pude deixar de ver que a loja era atulhada de ervas e velas, amuletos e calendários lunares. Havia uma gata preta numa prateleira, com o rabo estremecendo lentamente enquanto me olhava chegando. No pescoço tinha um colar de turquesas com um pentagrama pendurado onde, num gato normal, que não pertencesse a bruxa, haveria um guizo. Estendi a mão para o livro que eu estava procurando – não um dos grandes, com capa brilhante, cheios de fotos e capítulos chamados ―Feitiços de amor‖, do tipo que Tory e suas amigas poderiam ter escolhido, e sim uma pequena brochura sem ilustrações, que não poderia ser encontrada em qualquer cadeia de livrarias – e dei uma olhada nas últimas páginas, procurando o índice remissivo. Enquanto isso, Zach estava andando por ali, pegando coisas e examinando com curiosidade. Quando chegou à gata, parou e coçou embaixo do queixo dela. A gata começou a ronronar, tão alto que pude ouvir do outro lado da loja.

Então ele gostava de gatos, também. Au pairs, Seventh Heaven, focas, crianças... e gatos. Será que esse cara poderia ser ainda mais fofo? Um sino tocou e duas garotas entraram na loja. Duas garotas usando uniforme da escola Chapman. Duas garotas que, infelizmente, reconheci. O nó no meu estômago, que me visitava cada vez menos ultimamente, subitamente marcou presença. A vendedora bonita atrás do balcão falou: — Abençoadas sejam – disse para as duas novas freguesas. — Abençoada seja – Gretchen e Lindsey responderam de volta para ela. Lindsey dava risinhos o tempo todo. — Quantos anos Courtney vai fazer, afinal? – perguntou Zach, aparecendo de trás de um mostruário de ervas. – Doze? Dei um pulo e disse automaticamente. — Catorze. Tinha parado de examinar o índice remissivo do livro. Havia encontrado o que procurava. Mas como iria comprá-lo sem que Gretchen e Lindsey notassem e informassem a Tory que tinham me visto na Encantos? Tory nunca acreditaria que eu tivesse entrado por acaso naquela loja. Ou... acreditaria? — Ah, meu Deus – gritou Lindsey quando saí deliberadamente de trás do mostruário de ervas, bem no seu caminho. – Jinx? É você? — Ah – respondi fingindo que estava notando as duas pela primeira vez. –

Oi, pessoal. — Olha, Gretchen – disse Lindsey. – É a Jinx! Gretchen, sempre a mais séria das duas, não pareceu exatamente empolgada ao me ver. Na verdade, seus olhos muito maquiados se estreitaram. — O que você está fazendo aqui? – o olhar de Gretchen saltou para alguma coisa (ou alguém) atrás de mim, e suas pálpebras dela se estreitaram ainda mais. – Com ele? — Ah, oi – cumprimentou Zach, enquanto dava as costas para o mostruário de calendários que estivera olhando.

— Oi – respondeu Lindsey. Ao contrário de Gretchen, ela não pareceu achar suspeito o fato de estar trombando em Zach e eu numa loja de material de bruxaria a aproximadamente sessenta quarteirões de onde nós morávamos. – Tor está aqui também? Achei que ela disse que tinha de ir ao dentista, ou algo assim, esta tarde... — É – falei, empurrando com nervosismo o cabelo para trás das orelhas. – É, não. Tory não veio. Somos só nós. Viemos porque preciso comprar um presente. Um presente de aniversário. Para minha irmã mais nova. — Maneiro – disse Lindsey. Seu olhar pousou no livro que estava nas minhas mãos e ela franziu o nariz. – Mas por que vai dar essa coisa velha a ela? Este livro aqui é muito melhor. – Ela pegou o grande e brilhante. – Olha. Tem um monte de ilustrações. — Ela pediu este – menti. – Não sei. Ela é meio esquisita. — Está dizendo que bruxas são esquisitas? – perguntou Gretchen com sua voz grave. — Não! – exclamei. – Nossa, não. Só a minha irmã. — Eu acho que elas são esquisitas – comentou Zach, alegre. Lindsey deu-lhe um soco de brincadeira no peito. — É melhor ter cuidado. Ou eu jogo um feitiço em você. — Você não sabe, Lindsey, mas talvez alguém já tenha jogado – disse Grechen. Mas não parecia estar se referindo a Tory, pois estava olhando diretamente para mim. — Não faço a mínima idéia – falei na voz mais agradável que consegui. – Bom, encontrei o que eu precisava. Podemos ir, Zach? — Agora mesmo – ele respondeu. — Bem, a gente se vê – falei a Lindsey e Gretchen. E fui para o caixa. — Ah, ei – gritou Lindsey. – Nós vamos tomar um pouco de chá espumante, lá em Chinatown, quando sairmos. Querem ir? — Não posso – pus o livro no balcão. A vendedora bonita pegou-o com um sorriso. – Prometi aos pais de Tory que chegaria a tempo para o jantar. — Tory – ecoou Lindsey com uma gargalhada. – Não deixe ela ouvir você chamando-a assim. Ela mata você. — Ela pode matá-la de qualquer modo – murmurou Gretchen, mas alto o suficiente para que eu ouvisse.

— O que foi? – Lindsey parecia confusa. – O que você disse, Gretch? — Eu? – Gretchen fungou. – Não falei nada. Zach que havia me acompanhado, inclinou-se fingindo que estava admirando uns colares na vitrine embaixo do balcão. — O que ela está falando? – sussurrou ele. — Nada – respondi depressa. – É só... coisa de mulher. — Legal – disse Zach e levantou-se. – Que tal eu encontrar você lá fora? — Pode ser melhor. Zach assentiu e saiu da loja, com os sinos sobre a porta tilintando em seguida. — São dez dólares – informou a mulher atrás do balcão. Entreguei-lhe minha nota de cinqüenta novinha em folha. — Aposto que Torrance vai ficar realmente interessada em saber que você veio aqui com o cara dela – disse Gretchen, com a voz dura. — O quê? – Lindsey ainda estava confusa. – Gretchen? O que você está falando? — Meu Deus, Lindsey. – Gretchen lançou um olhar irritado na direção da amiga. – Você não vê o que ela está tentando fazer? Está tentando roubar o Zach debaixo do nariz de Torrance! — Zach não é o namorado de Tory – falei bruscamente, tanto para minha surpresa quanto para a de qualquer pessoa. A vendedora parou de contar meu troco, me olhando perplexa. — O que quero dizer – falei num tom mais suave –, é que Zach não gosta de Tory nem de mim. Ele gosta de Petra, certo? Zach e eu somos apenas amigos. — Até parece – era óbvio que Gretchen não tinha acreditado em mim. Lindsey, para atrás dela, apenas continuou parecendo confusa. — Somos só amigos – repeti, pegando o troco com a vendedora. Esperava que Gretchen não visse que minhas mãos tremiam. – Pode perguntar a ele, se quiser. — Acho que vou perguntar a Torrance – disse Gretchen. – Acho que é o que vou fazer. — Ótimo – rebati. – Faça isso. Peguei a sacola que a vendedora estava me estendendo, agradeci, dei as costas ao balcão e fui para a porta. E derrubei um mostruário de velas. — Meu Deus – ouvi Lindsey soltar um risinho, enquanto eu me curvava para pegar o máximo de velas possível antes que rolassem pelo chão. – Você costuma andar muito?

— Deixe que eu faça isso, querida – a vendedora saiu de trás do balcão. — Sinto muito – estendi uma braçada de velas para ela. – Sou desajeitada demais. — Bobagem – respondeu a vendedora com gentileza. – Poderia ter acontecido com qualquer um. Ande, ponha isso aqui. – Ela me ajudou a colocar as velas no balcão. – Pronto. Não foi nada. Ah, e leve isso. Você

quase esqueceu. Ela pegou no bolso da saia uma coisa enrolada num quadrado de papel de seda e estendeu para mim. — O que...? – Estendi a mão automaticamente e peguei o quadrado de papel. A coisa dentro fez um leve barulho chacoalhado. — Só uma coisa que acho que você vai precisar em breve – o olhar dela foi na direção de Gretchen e Lindsey. – Para dar sorte. Bênçãos para você, irmã. Agora meu embaraço era completo. Enfiei o objeto embrulhado em papel de seda na sacola junto com o livro, murmurei ―Obrigada‖ e disparei para fora da loja... ... e continuei pela rua como se estivesse sendo perseguida. — Ei – gritou Zach, correndo atrás de mim. – Devagar, certo? O Desafio Físico Presidencial acabou, lembra? — Desculpe – falei, tendo o cuidado de não olhar para ele. – Ah, meu Deus. Estou tão sem graça! — Por quê? – Ele acertou o passo comigo. Como ele podia não saber? Ele não tinha... Ah, certo. Ele não estava lá. Graças a Deus. Graças a Deus. — Nada – respondi, sentindo-me quase rindo de alívio. – Depois que você saiu eu... eu trombei num mostruário de velas e derrubei tudo. — Só isso? Achei que você estava falando da coisa com as amigas de Tory, de elas pensarem que a gente anda saindo junto. Congelei. E olhei para ele. Devagar. Seus olhos verdes estavam rindo para mim. — O que foi? Acha que não sei da paixonite de Tory por mim? O balão no meu estômago inchou até o tamanho de uma melancia. — Você não pode falar nada disso com ela – soltei num jorro. – Não pode dizer que sabe. E é mais do que uma paixonite, Zach. Ela ama você, é sério. — Me ama, é? Parece que ela quer ser mais do que amiga... com benefícios.

Ele estava rindo. Não dava para acreditar que ele estava rindo. — Zach. Você não entende. Ela não está brincando. Ela... Quase contei. Sobre o boneco. Não sei exatamente o que me impediu. Só que senti que Tory merecia ficar com um pouco de dignidade, apesar do comportamento idiota. — Ela poderia tornar a vida realmente desconfortável para mim – falei em vez disso. – Se ela achasse... bem, que você e eu... Zach parou de rir. A próxima coisa que percebi foram as mãos dele nos meus ombros. — Ei – ele me deu uma pequena sacudida. – Anime-se, prima Jean. Eu só estava brincando. A última coisa que eu iria querer no mundo seria tornar a vida mais difícil para você. Sei que é duro ser filha de uma pastora. Deve ser mias difícil ainda começar numa escola nova e morar com uma nova família além do... bem... Ele não disse a palavra perseguidor em voz alta. Não precisava. Nós dois sabíamos do que ele estava falando, ainda que nenhum de nós tivesse

jamais mencionado isso desde aquela primeira vez em que Tory abriu o bico de modo tão casual, no dia da minha chegada. — Além disso – Zach tirou as mãos de mim. – O que importa? Considerando por quem eu devo estar apaixonado, lembra? Estranhamente, essa lembrança, em vez de cravar uma estaca de ciúme no meu coração, me animou... um pouquinho. — Isso mesmo. Quero dizer, é totalmente ridículo essas garotas acharem que a gente está namorando, quando seu coração pertence a outra. — E não a qualquer outra. Mas o melhor pedaço de mulher do planeta. — É. Se elas disserem a Tory que nos viram, vou lembrar a ela que Petra é seu único amor verdadeiro. — E eu não terei opção além de apoiar você. Servidão eterna, lembra? Sentindo-me mil vezes melhor, virei-me para seguir pela rua, girando a bolsa da Encantos... ... e ouvi a coisa que a vendedora tinha me dado chacoalhar de novo. Parei, enfiei a mão na bolsa e comecei a desembrulhar. — O que é isso? – perguntou Zach.

— Não sei. Algum tipo de amostra grátis ou algo que a moça que trabalha lá me deu... Mas então vi o que o embrulho continha e parei, tão abruptamente que quase fiz com que Zach me derrubasse. — O que é? – Zach olhou para o que eu segurava. – Ah, legal. Ela deu um símbolo satânico a você. Excelente serviço aos clientes. — Não é um símbolo satânico – falei com a voz tensa. Nos raios oblíquos do sol poente, o colar de prata piscava no ninho de papel de seda. – O pentagrama é um símbolo mágico antigo, destinado a oferecer proteção espiritual para quem usa. Não tem nada a ver com Satã. Zach falou em voz gentil: — Ei, Jean. Eu estava brincando de novo, certo? Horrorizada ao sentir meus olhos se enchendo de lágrimas ali na calçada, diante de uma pequena loja de piercings, enfiei o colar de novo na sacola e a apertei contra o peito. Para dar sorte, ela dissera. Só uma coisa que acho que você vai precisar em breve. Como ela sabia? Mas uma pergunta melhor era: o que ela sabia e eu não?

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